domingo, 5 de fevereiro de 2017

“Cachaça Não é Água Não” estimula ou condena o etilismo?

Flávio Azevedo
Se algumas marchinhas de Carnaval podem estar com os dias contados por conta das suas letras que remetem ao preconceito, ao racismo e a discriminação, outras podem ser apontadas como educativas. É o caso da marchinha “Cachaça Não é Água Não”, assinada por Mirabeau Pinheiro, que em 1953 criou uma letra sobre uma das bebidas mais consumidas nos festejos de Momo: a “marvada”, a “danada”. Embora seja condenada, a cachaça faz parte da Cultura do brasileiro. Autor de outras canções sobre o tema, ele aborda o assunto sempre com muita animação e bom humor. Há quem diga que “Cachaça Não é Água Não” é mais uma apologia a bebedeira que uma advertência aos riscos de se embriagar. 

A marchinha “Cachaça” ou “Você Pensa que Cachaça é Água”, foi composta em conjunto com Lúcio de Castro, Heber Lobato e Marinósio Filho. Em 1953 foi gravada por Carmen Costa e Colé. Os autores da melodia foram acusados de plagiar a música “Pierrot Apaixonado”, de Joubert de Carvalho. Mais adiante a autoria foi reivindicada por Marinósio Filho, que acabou entrando em acordo com o Mirabeau, Castro e Lobato. Os direitos autorais foram divididos entre eles.

Natural do Espírito Santo, da cidade de Alegre, onde nasceu em 31 de julho de 1924, Mirabeau se destacava por canções que falavam de cachaça e situações periféricas ao etilismo como o porre e a embriaguez. Em 1955, em parceria com Ayrton Amorim, lançou “Tem Nego Bebo Aí”. No ano seguinte, entre outras marchinhas, compôs “Turma do Funil”, em parceria com Milton de Oliveira e Urgel de Castro.

Casamento confuso com Carmem Costa 
Publicação da época que abordava a questão do plágio das canções de Mirabeau.
Acredita-se que Mirabeau Pinheiro herdou do pai a vocação artística. Além de compositor ele era baterista e tocava nas noites cariocas. Uma das casas em que se apresentava era a boate Mocambo, onde conheceu Carmen Costa. Amigos promoveram um encontro entre os dois e logo estavam namorando. Mirabeau se apresentou como solteiro e pai de uma filha, mas era casado com Sidnéia Duarte Pinheiro e tinha outros filhos. As pesquisas sobre a vida do músico informam que ele ainda tinha outra mulher, Clotilde, com quem também tinha uma filha.

Num tempo onde não existia WhatsApp, Facebook, telefones celulares, entre outras coisas, uma pessoa conseguia ter várias vidas e viver cada uma delas durante muito tempo. Assim, Carmen e Mirabeau passaram a morar juntos, embora ele fosse casado. Em 1952, o casal estourou com “Cachaça Não é Água Não”. A marchinha fez tanto sucesso que foi trilha sonora do filme “Carnaval Atlântida”, onde foi cantada por Colé & Grande Otelo, que interpretavam uma dupla de detetives atrapalhados.

A vida dupla de Mirabeau se tornou tema de uma canção. Em 1953 Ricardo Galeno escreveu “Eu Sou a Outra” e Carmem grava. Em tempos distantes da liberdade atual, a canção reforçava o mito da outra e estimulava o imaginário popular. Em 1954 Carmen sobe nas paradas com 'Quase', outra composição de Mirabeau, agora, em parceria com Jorge Gonçalves. No mesmo ano nasce a filha do casal, que recebeu o nome de Sinézia. A criança foi batizada pela Missa Brasil, Martha Rocha, evento apoteótico que parou o Rio de Janeiro.

Carmen Costa sobre Mirabeau
Nos estúdios da Rádio Nacional, o cantor, Bill Farr; o ator, Paulo Gracindo; a cantora, Carmen Costa; e o compositor, Mirabeau Pinheiro.
Em abril de 2007, quando a cantora faleceu, o jornalista Ancelmo Gois escreveu sobre a relação conturbada de Mirabeau e Carmen Costa. Ela vinha de um casamento fracassado com um estrangeiro e acabou se contentando em ser a outra na vida do compositor. No livro, “A Outra: um estudo antropológico sobre a identidade da amante do homem casado”, publicado pela antropóloga Mirian Goldenberg (1990), há um depoimento lúcido e sofrido de Carmen sobre a convivência com Mirabeau.
– Conheci Mirabeau em 1952 na boate Mocambo, na Rua Prado Júnior, em Copacabana (zona sul do Rio). Ele cantava e tocava bateria. Ouvi e gostei de suas composições “Cachaça não é água” e “Quase”. Naquela época eu estava muito só. Fui casada 11 anos com um americano, mas me separei, em 1945. Eu e Mirabeau começamos a andar juntos por toda parte, até que fiquei grávida. Ele era casado e na época tinha uma filha. Quando nasceu seu segundo filho fui arranjar o dinheiro do parto, com Ataulfo Alves. Sua mulher aparecia para falar comigo e me chamava de vagabunda, mas eu tinha a cabeça erguida. Era independente, ganhava meu dinheiro. E ela só queria o dinheiro dele. Hoje, canto suas músicas e os direitos autorais vão todos para ela. Chegamos a morar juntos, só que nosso amor foi minguando. Nossa história foi dura e difícil. Só não fomos mais felizes porque ele era casado. Tivemos uma filha, Sinézia, que está com 43 anos – contou a cantora.

Sobre o papel da “Outra” que acaba se tornando emblemático na vida de Carmen Costa, por conta da canção e da situação vivida com Mirabeau, ela conta como se deu essa situação a autora do livre sobre o tema.
– Recebi a música "Eu sou a outra" pelo telefone, porque algumas pessoas sabiam do nosso caso. Hoje ainda é um sucesso, que deu coragem para as outras aparecerem. Naquela época era mais sossegado que hoje, não havia tanta fofoca. Os que sabiam me censuravam. Mirabeau não tinha coragem de se separar, mas chegou a pensar em se casar comigo no Uruguai, só que sua mulher não assinava o divórcio. Acabamos brigando e eu fui para os Estados Unidos procurar meu primeiro marido (1959) e voltei ao Brasil no ano seguinte. Passei a não aceitar duas vidas, não queria mais me dividir, viver um amor partido. Durante muito tempo mantivemos correspondência, mas a atração de corpo acabou. Faria tudo de novo, mas ia exigir mais. Acho que ele faz muita falta, principalmente, como compositor – concluiu Carmen Costa.

Texto da Série "Carnaval de Antigamente", por Flávio Azevedo.

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