quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Inquisição em Tanguá no Século XVIII

Por Dawson Nascimento 
Dawson Nascimento
O Tribunal do Santo Ofício, instituição, criada nos fins da Idade Média, tinha por função combater qualquer tipo de manifestação que representasse uma ameaça contra a hegemonia dogmática católica. Em 1591, o clérigo, Heitor Furtado Mendonça, foi o primeiro a estabelecer essas visitações que investigavam os casos de heresia ocorridos no Brasil.

As denúncias pelas práticas heréticas surgiam das mais variadas formas. Qualquer delação sem provas ou dedução precipitada bastava para que as autoridades retirassem o acusado de seu lar para responder ao processo. No momento em que chegava a uma localidade, para facilitar o acesso aos suspeitos, o inquisidor anunciava nas praças e igrejas os tais “editos de fé”, que era uma espécie de documento oficial onde o clérigo declarava os pecados que poderiam ser denunciados, segundo o mestre em História, Rainer de Souza.

Após ser preso pelas autoridades, o acusado passava por uma série de torturas que tinham como principal função obter a confissão do herege. Uma das punições mais comuns utilizadas era cortar a planta dos pés do acusado e, depois de untá-los com manteiga, expor as feridas em um braseiro. Contudo, antes que uma sessão de tortura fosse iniciada, um médico realizava uma avaliação prévia para que as limitações físicas do indivíduo fossem levadas em conta.

Somente quando alguém não confessava os pecados denunciados é que a morte na fogueira era utilizada. Sendo um instrumento de forte natureza coercitiva, os membros do Tribunal da Inquisição acreditavam que a humilhação pública era um instrumento de combate bem mais eficiente que a morte. A grande maioria das perseguições do Santo Ofício ocorreu na segunda metade do século XVIII. Ao todo, cerca de 500 pessoas foram denunciadas no Brasil, sendo a maioria acusada de disseminar o judaísmo.

Quem poderia imaginar que bem perto de nós, aqui do lado, no município de Tanguá, houvesse uma ação da Inquisição? O palco desse acontecimento foi a capela de Nossa Senhora da Soledade, edificada no final do século XVII, nas terras do engenho dos Duques, de propriedade da família Duque Estrada, cujo patriarca foi o Alferes Henrique Duque Estrada, ali estabelecido desde 1651, segundo os registros da Igreja de Santo Antônio de Casserebú (Santo Antônio de Sá).

Alguém pode estar se perguntando: “mas Tanguá tem menos de 20 anos de emancipação político e administrativo... como pode?” Com certeza isso é verdade, mas a sua história é bem mais antiga do que parece. Segundo os apontamentos arrolados no livro de tombo dos Jesuítas, a região que compreende o município de Tanguá no século XVI se chamava Tapacurá.

O nome se deriva de uma das tribos de índios que habitavam a região. Também era o nome da Serra que hoje se chama Barbosão, como se pode observar nas antigas cartografias do estado. Tapacurá também era uma liga, atadura, que os indígenas, especialmente as mulheres, utilizam amarrada abaixo do joelho, para lhes preservar das câimbras e lhes dar resistência para as longas caminhadas. Tanguá ou Tapacurá era, nessa época, Distrito da Freguesia de Itaboraí e Santo Antônio de Sá. Esse processo se encontra na Torre do Tombo (Arquivo Nacional).

Esta capela fica situada na confluência dos rios, Mutuapira (atual Duques) e Cacerebú. O ato ocorreu no decorrer ano de 1784 e o processo se estendeu até o ano de 1786, sendo o réu, João Nunes da Rosa, de 64 anos, administrador da dita capela de Nossa Senhora da Soledade. Ele foi acusado por várias testemunhas por heresia, blasfêmia, entre outras acusações, por desdenhar dos atos litúrgicos, dos sacerdotes, e das imagens da capela acima citada.

O volume de papéis do processo tem perto de 43 folhas, vamos citar só alguns trechos, pois seria enfadonha e desnecessária toda reprodução. Alguns textos estão transcritos na forma como se encontra e com a grafia original da época (CÓDIGO DE REFERÊNCIA PT/TT/TSO-IL/028/05635).

DATAS DE PRODUÇÃO 1784-05-14 a 1786-03-20 DIMENSÃO E SUPORTE 48 fl.;
Papel Folhas de nº 1, Processo contra João Nunes da Rosa administrador da Capela de NS da Soledade de Tapacurá do Bispado do Rio de Janeiro. Preso em 20 de Maio de 1785.
Folhas de nº 2, Sumário contra João Nunes da Rosa, administrador da capela de NS da Soledade de Tapacurá, Bispado do Rio de Janeiro. Preso em 20 de Maio de 1785.
Folhas de nº 3, os Inquisidores apostólicos contra a herética pravidade e apostasia nesta cidade de Lisboa e seu distrito, e c. mandamos a qualquer Familiar ou Official do santo Officio, que onde quer que for achado João Nunes da Rosa, morador da Freguesia de São João de Itaboraí, administrador da capela de NS da Soledade do distrito de Tapacurá, o prendais sem sequestro de bens. Por culpa que contra ele há nesse Santo Ofício. Obrigatórias a prisão e preso a bom recado, com cama e mais fato necessário a seu uso, e até sessenta mil réis em dinheiro para seus alimentos, e o trareis entregareis debaixo de chaves ao Alcaide dos cárceres secretos dessa Inquisição. E mandamos em virtude de Santa Obediência, e sob pena de excomunhão Maior e de quinhentos cruzados para as despesas do Santo Offício, e de procerder- mos como mais nos parecer, a todas as pessoas, assim eclesiásticas como seculares de qualquer grau, dignidade, condição e preheminencia que sejam, vos não impidão fazer o sobredito, antes sendo por vos requeridos, vos deem todo favor e ajuda; mantimentos, pousadas, camas, ferros, cadeias, cavalgaduras, barcos e tudo o mais que for necessário, pelo preço e estado da terra. Cumprindo assim com muita cautela e segredo, e não façais. Dado em Lisboa ocidental nos Santos Ofícios da Inquisição sob os nossos sinais, e selos dela, Aos 14 do mês de Maio de 1784 anos Clemente José da Cunha o sobreescreví. Antônio Veríssimo-Alexandre Jansem-Antônio Homem Frigoso.
Folhas de Nº 4 Auto de entrega. Aos 22 dias do mês de Maio de 1785, em Lisboa, e porta dos carceres secretos desta Inquisição, ali foi entregue ao Alcaide do mesmo, José dos Santos Pereira, pelo familiar Antônio Lobo de Saldanha o preso João Nunes da Rosa, viúvo de Josefa da Assumpção, natural da freguesia de São João de Itaboraí, freguesia de Santo Antônio de Sá, destrito do Bispado do Rio de Janeiro donde veio preso na Nau NS de Belém, de que é Capitão Jorge Mardearte, e sendo buscado na forma do regimento, se lhe achou em dinheiro cincoenta e um mil e quinhentos e dez réis e um espadim de prata, e de como o dito Alcaide se deu por entregue o dito preso, assinou este termo Antônio Gomes escreví.

Vamos pular para a folha de Nº 11, onde temos mais “culpa” contra o réu João Nunes da Rosa.

Do mesmo processo de Gracia, escrava de Manoel da Costa e sumária de testemunhas a que procedeu o dito comissário Vicente Pereira de Noronha Consta haver deposto debaixo do juramento dos santos Evangelhos por ocasião do mesmo interrogatório e em o mesmo dia, mês e anno, Ignácio de Souza Mattos, solteiro, natural da Vila de Macacú e morador na freguesia de São João de Itaboraí, de idade de sessenta e quatro anos o seguinte:
Ao segundo dia que ele só sabe pelo pronunciar, que João Nunes da Rosa, homem viúvo e morador no distrito de Tapacurá, no lugar chamado Tangoá, que serve de administrador da capela de NS da Soledade, hé homem blasfemo, e pouco temente a Deos, que quando vê muita chuva costuma dizer que é demônio que ha dá, e quando vê muito sol costuma dizer as mesmas palavras, sendo reprehendido por ele testemunha dizendo-lhe que tanto o sol como a chuva erão obras de Deus, o dito João Nunes da Rosa mofadisso, negando inteiramente a providência de Deus, e que o mesmo João Nunes da Rosa se sente muito mal do santo sacrifício da missa, dizendo ser invenções dos clérigos e padres para ganhar dinheiro, que se alguma pessoa quer mandar dizer alguma missa a Nossa Senhora, respondeo o dito delato que Nossa Senhora não necessita de missas, que e tal mal ao estado sacerdotal e que costuma a dizer estas palavras que clérigos frades se curam a chicote. Entre essas e muitas outras acusações que as testemunhas declararam contra João Nunes da Rosa.

O fato final, segundo os documentos é que o João Nunes da Rosa, conseguiu se safar da morte. Um ano depois de preso em 20 de Maio de 1785, foi solto em 16 de Março de 1786, depois de ser repreendido na Mesa Examinadora do Santo Ofício foi posto em Liberdade depois de pagar as custas.

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