sexta-feira, 31 de maio de 2013

Um copo de água fria

Durante uma longa viagem em estrada de ferro, estava eu há algum tempo, num dia de extenuante calor, em companhia dum oficial de cavalaria que tinha tomado parte em alguns combates na grande guerra. Contou-nos alguns episódios, mas nenhum me impressionou tanto como o que se segue:

– Foi, disse ele, no dia seguinte a uma vitória custosamente ganha com esforços e cansaço extraordinários. Tinham-me encarregado de levar uma ordem importante à retaguarda, quando, no momento de partir, o meu cavalo, estafado, recusou marchar. O animal mancava e não podia caminhar. Sem demora, eu fui buscar outro. Este era tão bravo e manhoso, que alguns minutos se passaram antes que me tivesse sido possível montá-lo e sujeitá-lo à obediência. Empinava, escoiceava e quando eu estava quase a vencê-lo, estacava ao menor obstáculo e continuava com os seus pinotes.

Entretanto, era preciso apressar-me, A mensagem de que eu era portador não admitia nenhuma demora e a estrada, obstruída com tropas e materiais, dificultava ainda mais a minha viagem. Era meio-dia e estava apenas no meio do caminho. O ar estava pesado e abafadiço. Nuvens de pó secavam-me a garganta. Estava esfalfado e o meu cantil estava vazio. Sentia-me desfalecer. Numa volta do caminho descobri uma fonte abundante, junto da qual alguns soldados descansavam e enchiam os seus cantis.

Desejava descer para fazer o mesmo, mas o cavalo, como que pressentindo a minha intenção, deu pinotes tão furiosos, que tive de renunciar à minha tentativa para não excitar os risos grosseiros do acampamento. Aborrecido com este contratempo, desatei o meu cantil e, dirigindo-me a um dos soldados, o único que parecia não se rir do meu infortúnio, pedi que me desse o enchesse. Era de mau aspecto, de sobrecenho carregado, mas ainda assim estava eu longe de esperar resposta tão cruel:
– Encha-o você! Diante destas palavras, a minha cólera não teve limites.
– Desgraçado! – gritei-lhe; – Tomara que um dia eu o encontre a morrer de sede e a pedir um copo de água fria, para eu ter também o prazer de lhe recusar!

Em seguida, dei de esporas ao cavalo e parti numa corrida desenfreada, sem fazer caso dos convites dos outros soldados, que me gritavam que voltasse. Uma légua depois, um rapazinho, compadecido, deu-me água, a mim e ao meu cavalo. Em troca dei-lhe um punhado de dinheiro, mas comparando a prontidão que ele teve em me servir com a conduta dos meus companheiros de armas eu senti como que uma onda de ódio a revolver-se dentro de mim. O rosto daquele soldado ficou gravado em traços indeléveis na minha imaginação e jurei procurá-lo – Deus me perdoe! – Até para vingar-me.

Durante dois anos, nos campos de batalha, entre os moribundos, continuei sem resultado esta busca ímpia. Enfim, chegou o dia. Em resultado de alguns ferimentos, eu fui levado para um hospital de guerra. Não estando ainda em estado de retomar o meu serviço, eu empregava o tempo a cuidar dos que estavam mais feridos que eu.

Nunca me senti tão compadecido para com os pobres soldados como no meio destas cenas de dor e de sofrimento, das quais os campos de batalha não dão ideia nenhuma. Tinha verdadeiro prazer em aliviar-lhes as dores e alegrá-los. No meio destas novas ocupações, esqueci o meu “inimigo”. Era assim que eu chamava ainda aquele que me tinha recusado o copo d'água fria.

Depois duma grande batalha, muitos feridos vieram para o nosso hospital. Todas as salas ficaram repletas. O calor era medonho e os doentes sofriam cruelmente de sede e da atmosfera abrasadora da sala. De todas as camas gritavam: Água! Água! Água! Peguei num copo e num balde d'água gelada e fui de fileira em fileira, distribuindo o líquido precioso a todos os que o pediam. Só o cair da água no copo já lhes fazia brilhar a alegria nos olhos abrasados pela febre.

Quando eu andava pelo meio das coxias, entre as camas, um homem deitado do outro lado da sala levantou-se de repente, gritando:
– Água! Água! Pelo amor de Deus!

Fiquei horrorizado. Tudo o que me cercava desapareceu aos meus olhos e não via senão a ele. Era o que me tinha recusado um copo de água fria! Aproximei-me, mas não me reconheceu. Caiu exausto sobre o travesseiro, com o rosto voltado para a parede. Então senti uma pressão na alma... Ouvi uma voz dentro de mim a dizer distintamente:
– Faze-lhe ouvir o barulho da água... Passa e torna a passar diante dele... Dê a todos os que o cercam e não a ele. Vinga-te!

Mas ao mesmo tempo ouvi o murmúrio doutra voz. Uns dizem que era a voz da minha consciência... Outros a de Deus... E outros ainda o resultado das lições de minha mãe. Fosse qual fosse, esta voz dizia:
– Meu amigo... Hoje é o dia propício e a hora de pagar o mal com o bem, de perdoar, como Jesus te perdoou. Vai e dá de beber ao teu inimigo.

Um movimento involuntário me arrastou para a sua cama. Amparei-lhe a cabeça com o braço e aproximei o copo dos seus lábios febris. Oh! Como bebeu! Nunca esquecerei sua expressão de alívio e o olhar que me lançou, sem pronunciar palavra. Vi que estava profundamente comovido. O pobre teve de sofrer amputação de uma perna e pedi ao médico autorização para o tomar sob os meus cuidados.

Tratava-o dia e noite. Durante muito tempo conservou o mesmo silêncio, até que um dia, quando me afastava de sua cama, agarrou-me pelo paletó e, puxando-me para bem junto de si, disse-me em voz baixa:
– Lembra-se você do dia em que me pediu de beber?
– Sim, camarada; mas o que lá vai, lá vai. Isso acabou.
– Para mim não, continuou. Não sei o que tinha naquele dia. O capitão acabara de me repreender... Tinha febre, estava encolerizado. Em instantes eu estava envergonhado, mas era tarde demais. Há dois anos que o procuro para lhe pedir perdão. Quando reconheci aqui, lembrei-me do que me tinha dito e tive medo. Diga-me: Você me perdoa?

Eu tinha-o procurado dois anos para me vingar... Ele me procurou para se humilhar e me pedir perdão. Qual dos dois tinha seguido melhor o espírito de Cristo? Certa confusão se apoderou de mim.
– Camarada, disse-lhe eu depois de uma pausa – você é muito melhor que eu. Não falemos mais nisso!

Eu estava presente quando lhe fizeram a amputação. Já o amava como a um irmão. Ele sabia que ia morrer, mas antes me confiou alguns objetos para mandar a sua irmã, juntamente com uma carta que me ditou. Perguntou-me se não haveria na Bíblia uma passagem que tratasse dum copo de água.
– Peço a você, disse-lhe eu, que não torne a falar nisso. Mas ele continuou:
– Você não sabe, meu fiel amigo, o bem que fez em não me recusar o copo de água.

Naquela noite a febre do doente aumentou e por vezes parecia delirar. Contudo percebia-se que a sua confiança em Jesus Cristo era completa. Tinha a certeza de estar salvo. Assim o mostrava nas suas orações. Pela madrugada, mexeu-se, acomodou a cabeça no travesseiro, e fechou os olhos para os não abrir mais neste mundo. Tinha adormecido para só acordar na eternidade.

Ao vê-lo morrer assim, tranquilo e consolado, que grande prazer senti em ter-lhe dado de beber... Em ter pagado mal com o bem! Lembrei-me então destas palavras de Jesus: “Todo o que der a beber a um daqueles pequeninos um copo de água fria, não perderá a sua recompensa”.

Fonte: livro Pérolas Esparsas

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