sexta-feira, 31 de maio de 2013

A mentira fatal

Que direção você pretende seguir?
Era inverno. O sol acabava de desaparecer no horizonte e as sombras da noite pairavam sobre a aldeia. Sozinha, numa poltrona antiga, próximo de um lume crepitante, uma senhora de certa idade, cabelos prateados, seguia, distraída, os últimos clarões do dia. Enquanto isso, o seu pensamento se embrenhava em recordações do passado.

De repente abriu-se a porta e ouviram-se passos rápidos.
– Então! Se divertiu, Bertinha? Disse a idosa senhora, pondo a mão afetuosamente nos louros anéis da menina que acabava de entrar.
– Oh!, tia Rute, respondeu esta, e agora venho pedir-lhe que me conte uma de suas lindas histórias.

Berta era filha única. Alguns meses antes perdera a mãe. Agora estava de visita em casa da tia, da qual soubera ganhar a afeição. Mas a tia Rute era muito perspicaz e por isso havia descoberto um grande defeito na sobrinha.

Para sua tristeza, ele percebeu que a criança não tinha escrúpulo nenhum em mentir. Aliás, mesmo descoberta, não corava com as suas mentiras. Ora, se tia Rute tinha horror especial por algum pecado, era por certo pela mentira. Sendo assim, ela resolveu corrigir a menina tanto quanto possível deste defeito. Prometeu fazê-lo nessa mesma noite, com a ajuda do Senhor, mostrando-lhe o perigo de seu pecado.

– Vamos, toma o teu crochê, minha querida, disse-lhe ela, e vem assentar-se ao pé de mim.

A criança obedeceu, e quando ficou bem instalada junto da tia, esta principiou a falar nos seguintes termos:
– Sabes, Berta, hoje eu estou velha, a memória começa a faltar... Mas apesar disso, eu me recordo muito bem duma história que vou te contar.

Na minha juventude, eu andava na escola com uma menina chamada Ana Clara. Ela era terna, amável, sensível, e ao mesmo tempo muito estudiosa. Ela tentou travar amizade comigo, mas eu resisti. Eu não lhe tinha nenhuma amizade pela razão de que ela era minha rival. Não fosse ela, eu seria a primeira na nossa classe. A pobre Aninha não sabia a que atribuir a minha frieza.

Eu, ainda que educada por pais cristãos, esforçava-me muitas vezes por fazer mal à minha companheira. Excitava as outras contra ela, e como ela era muito tímida para se defender, eu triunfava quase sempre. Um dia, na classe, estávamos nós a soletrar a palavra trouxe. Com a sua voz fraca e meiga, Aninha soletrou: t, r, o, u trou, x, e, xe, trouxe. A mestra, não tendo ouvido bem, exclamou: Mal! Adiante.

Mas, voltando atrás de repente, disse-lhe:
– Tu não soletraste: t, r, o, u, c, e? Não senhora, respondeu Aninha, eu disse: x, e, xe. A mestra duvidava ainda, e voltou para mim:
– Rute, como disse a Ana?

Atravessou-me o espírito um pensamento diabólico. Vi-me a primeira na minha classe, deixei-me arrastar pelo mal e pronunciei uma odiosa mentira.

– Ana disse c, e, ce, respondi eu sem hesitar.

A professora voltou-se para ela. Confusa com a minha acusação, a minha companheira baixava a cabeça em silêncio, enquanto um rubor súbito lhe dava toda a aparência duma culpada.
– Ana, disse a senhora severamente, eu não julgava que fosses mentirosa. Vai-te sentar naquele canto, e no fim, das aulas, espera-me.

Eu conseguira o que desejava. Ana caíra em desagrado, e eu fora proclamada primeira; mas não era feliz. Quando terminou a aula, eu fiz que tinha perdido alguma coisa e fiquei na sala. E ouvi a voz da mestra:
– Ana, vem cá.
Ouvi então o passo leve da minha companheira.
– Como pudeste mentir assim? Continuou a mestra.
– Eu não menti, minha senhora, respondeu a meiga criança. Mas o som da voz, o tremor que dela se apossou, parecia, desmentir as suas palavras.
– Dá cá a mão, disse a professora.

É necessário dizer-te, Berta, continuou a Tia Rute, que no meu tempo, as crianças eram mais severamente castigadas do que hoje. Por isso, eu não fiquei surpreendida por ouvir cair na mãozinha da inocente menina as repetidas pancadas da cruel palmatória. Ah! Bem podes olhar para mim com assombro, Berta. Cada pancada ia-me ao coração. Eu, porém, não tinha coragem de declarar a minha falta. Deslizei mansamente sala fora.

Ao voltar para casa, vi Aninha, que caminhava lentamente, e com uma mão segurava os livros enquanto com a outra limpava as lágrimas que lhe corriam das faces. Os seus soluços entrecortados penetravam até ao fundo da minha alma. Ela caminhava assim chorando, quando de repente, batendo com o pé em uma grande pedra, caiu, espalhando-se lhe os livros pelo chão. Eu apanhei-os em silêncio e entreguei-os a ela.

Os seus olhos azuis, úmidos de lágrimas, fixara-se sobre mim, e com uma voz meiga e amável, disse-me ela:
– Obrigada, Rute.

O meu coração pulsava violentamente; mas eu não me atrevi a falar-lhe. Entrei precipitadamente em minha casa. Quando cheguei em casa, pensei que, visto como todos ignoravam a minha falta, eu podia rir e tagarelar como de costume. Mas ai de mim! Isto não me tornava menos pesado o fardo que me oprimia o coração. Eu não tinha necessidade dum acusador humano, pois o olhar de Deus perseguia-me.

Mas quanto mais perturbada me sentia, mais me esforçava por parecer alegre, de tal modo que várias vezes durante o serão fui repreendida pela minha alegria ruidosa, quando eu muito a custo podia conter as lágrimas. Por fim retirei-me para o meu quarto. Não pude orar, bem depressa me deitei e fechei resolutamente os olhos.

Mas dormir era-me impossível! O velho relógio da casa fazia estremecer o meu pobre coração com as sua vibrações prolongadas, e quando soou meia-noite, pareceu-me ouvir dobrar os finados. Voltei-me, tornei-me a voltar sobre o travesseiro, mas parecia-me duro como pedra.

Aqueles belos olhos azuis inundados de lagrimas, estavam constantemente diante de mim e os meus ouvidos não cessavam de ouvir as pancadas repetidas da cruel palmatória... Enfim, incapaz de permanecer mais tempo neste estado, saltei abaixo do leito e fui-me assentar ao pé da janela. Tudo tinha um aspecto triste e sinistro, que me gelou. As árvores erguiam-se sombrias e imóveis, e pareciam-me duma altura desmedida. Nada havia, até nas grades brancas e nas aléias ensaibradas, que não me parecesse ter alguma coisa estranha.

De novo me dirigi para o meu leito e via a colcha branca que minha mãe me tinha dado no dia de ano novo, alguns meses antes de morrer. No mesmo instante veio-me à memória uma infinidade de pensamentos. Recordei-me daquela última súplica que minha mãe fizera em meu favor: “Ó Senhor! Desperta na minha querida Rute a sinceridade e a sabedora que vêm do alto!”. Esta recordação compungiu-me. Em vão tentei expulsá-la da memória. Ela me perseguia incessantemente. Desfiz-me em lágrimas, mas as lágrimas não me deram a paz.

Cada vez mais agitada, tomei por fim o partido de ir para o quarto de meu pai e, lançando-me sobre o seu leito, exclamei soluçando: Papai! ó papai...! Não pude dizer mais nada. Meu pai tomou-me nos braços, encostou-me a cabeça ao seu peito e procurou acalmar-me. Quando em parte o conseguiu, eu confessei-lhe o motivo das minhas lágrimas. Oh! como ele pediu ao Senhor que perdoasse a sua Rutezinha!
– Querido pai, lhe disse eu, quer acompanhar-me agora à casa da pobre Aninha?
– Agora?! – Repetiu ele muito surpreendido.
– Esperemos pela manhã, minha filha. 

Toda demora era para mim um verdadeiro suplício. Todavia esforcei-me por ter paciência e depois de ter abraçado meu pai, eu voltei para o meu quarto, mas as pálpebras fatigadas não podiam fechar-se. Eu ansiava por ir pedir perdão a Aninha. De todo o coração suspirava pelo dia. Depois de em vão ter esperado alguns minutos, que me pareceram longos como horas, foi-me impossível resistir mais tempo à voz da consciência. Então, precipitando-me de novo ao quarto de meu pai, eu supliquei-lhe que no mesmo instante me levasse à casa de Aninha.
– Ah! murmurei eu sem saber bem o que dizia, se ela morresse antes de me ter perdoado!

Meu bom pai olhou para mim com inquietação, colocou-me sua mão no rosto febril e depois de ter refletido disse: “Está bem, eu te acompanharei, minha filha”. Alguns minutos depois estávamos nós a caminho. Ao aproximarmo-nos da casa de Aninha, nos vimos várias luzes que se cruzavam em todos os sentidos na casa. Tremula, cheguei-me para meu pai.

Ele abriu a grade, sem ruído, e entramos em silêncio. O doutor, que nos conhecia, saía nessa mesma ocasião da casa. O seu assombro foi grande ao ver-nos ali a tal hora, mas como descreverei eu o que sofri, quando ele disse a meu pai que Aninha estava com um ataque cerebral!
– Sua mãe, continuou o doutor, disse-me que há alguns dias ela não andava bem, apesar disso quis ir à escola como de costume; mas parece que ontem à tarde ela voltou completamente mudada. Não pode cear, e sentou-se à mesa sem dizer uma palavra. Como parecesse triste, sua mãe tratou de descobrir o motivo; mas foi em vão. Por fim a pobre criança foi-se deitar, e cerca de uma hora depois, chamaram-me. Desde então não a deixei, e acho o seu estado muito grave.
– No seu delírio, pronunciou várias vezes o nome da Rute, ajuntou o doutor olhando para mim; com uma voz suplicante pedia-lhe que tivesse piedade dela e que a salvasse. 

Oh! Berta, que nunca sintas o pungente remorso que me repassou o coração ao ouvir estas palavras! À força de súplicas, consegui da mãe de Aninha licença para vê-la, por um instante. A viúva tomou-me pela mão e conduziu-me ao quarto da filha. Desde que a vi, perdi toda a esperança; as sombras da morte pareciam velar já a sua bela fronte e os seus olhos azuis. Consternada, trêmula, ajoelhei ao pé do seu leito, e murmurei palavras de arrependimento. Levantei os olhos para ela como para lhe implorar perdão, mais ai de mim! Não, Berta, dos seus lábios nunca mais eu devia ouvir uma palavra de perdão! Quando de novo tornei a ver Aninha ela dormia.

Suas faces não mais seriam coloridas desse vivo encarnado que as animava nos dias de saúde. As suas longas pestanas castanhas lançavam como que uma sombra fúnebre, sobre o seu rosto de mármore. Não mais havia delírio, não mais haveria palpitações de coração. Aquela mãozinha branca que ela apresentara às pancadas da palmatória estava junta a outra. O seus olhos não mais deviam encher-se de lágrimas, o seu seio, não mais devia arfar de aflição. Ela dormia o sono da morte!

A minha dor foi viva, o meu desespero imenso! Eu não podia me perdoar por ter contribuído para, pela minha indigna mentira, fazer descer ao túmulo tão meiga criança. Quão longo foi o inverno que se seguiu! A febre assaltou-me logo a seguir a estes sofrimentos morais. No meu delírio, eu chamava sem cessar pela pobre Aninha. Contudo o Senhor ouviu as orações de meu querido pai e me levantou do leito de dor. 

Quando a primavera semeou de flores a sepultura de Aninha, permitiram-me que fosse visitá-la. Eu não poderei dizer quão dolorosamente comovido ficou o meu coração quando sobre o mármore branco li estas palavras: ANA CLARA. Ajoelhei-me junto da sepultura, e orei durante muito tempo ao Senhor para que me perdoasse. Desde esse momento, Berta, eu fiquei aliviada, fortificada e consolada.

Pronunciando estas palavras, a tia Rute colocou ternamente a mão na cabeça da sobrinha. Desde há muito Berta se sentia comovida, e agora vertia lágrimas ardentes. Sua tia não tentou acalmá-la, porque esperava que estas lágrimas lhe seriam salutares.
– Peça por mim, querida tia, murmurou Berta. 
A tia fez subir ao Céu ardentes súplicas pela sua querida sobrinha. Berta nunca mais esqueceu aquele serão, porque um raio de luz divina acabava de penetrar-lhe na alma. 

A falsidade apareceu-lhe sob o seu verdadeiro aspecto, e ela sentia a necessidade de procurar o socorro de Deus. A tia Rute não se arrependeu de ter assim, evocado a mais triste recordação do seu passado, vendo o bem que dela resultou, porque esta encantadora menina, cuja boca fora tantas vezes manchada pela mentira, tornara-se, com o passar do tempo, um modelo de sinceridade, de veracidade e retidão, como o devem ser todos os meninos e meninas que querem servir a Jesus.

Fonte: livro Pérolas Esparsas

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